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borrasca
Sorrio, digo até amanhã à secretária. Fecho a agenda, pouso a caneta. Involuntariamente releio uma manchete sobre o Benfica. Dobro e redobro o jornal e lanço-o na papeleira. Inspiro reclinando a cadeira. Pernas sobre o teclado, olhos na parede, um cartaz, três palavras: 'Zeit ist Kunst'. Uma foto de satélite, sem traços de humanidade. Atrás do computador uma parede de vidro. Esparsas gotas de água cintilam. Uma mariposa abriga-se num canto. A noite entrou discreta. A lua decora o topo da alameda. Lá embaixo as luzes da praça de Londres. O Natal já chegou às copas das árvores. O trânsito arrasta-se penosamente. Não ouço o carrilhão, apenas buzinas. Dois campanários enquadram um néon. Como sempre anuncia em luz azul 'Tranquilidade'. O silêncio assume controlo do edifício. Despacho um par de e-mails pessoais, como é hábito, para leste. Disperso-me longamente na corresponência. É tarde, já começam a limpar os corredores. Horas de sair daqui. Saudo o velho segurança, com o seu ar de polícia reformado. Desço as escadas envolvidas numa gloriosa gaiola de vidro, e acho-me na garagem. Ligo a ignição e acelero. Uma força provinda da angústia propele-me por uma estrada deserta. Caiem os primeiros pingos de uma irritante chuva. Os braços giram-me no volante de forma automática, e o pé torna-se mais pesado. O carro desliza num asfalto que reflecte as luzes da noite e precipita-se numa vertigem na rotunda com um prolongado ruído de pneus. Revejo salgadas gotas numa face amarga. Os finos e escassos pingos são agora grossos e frequentes. Recobro a consciência numa luz vermelha, mas logo o intenso tamborilar da chuva na capota me leva para longe. Descubro-me sobre o estuário do Tejo. As rajadas de vento desviam continuamente o carro da sua trajectória. A borrasca empurra-me para longe dum mundo perfeito e na direcção do vazio. Ouço o rebentar violento das vagas, como um convite. Dirijo-me ao oceano. Sinto-me bem junto dele. Somos velhos e fieis amigos e gosto de ouvir a sua voz. Hoje estamos ambos em tempestade e a sua voz chama-me. Saio do carro e entre dois dos seus lamentos grito-lhe o meu desespero. A chuva envolve-me em fortes bátegas colando-me a roupa ao corpo, enquanto pequenos ribeiros nascem no cabelo e desaparecem por entre as barbas, para surgirem renovados no descampado do pescoço. Tenho frio como nunca. Sei que o conforto físico está apenas a alguns minutos, mas que fazer ao frio que vem de dentro de mim? M.Daedalus |
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